- Prestem atenção no que vou falar agora pra vocês,preciso da total atenção de todas – A voz de Marie estava menos convicta,mais temerosa e levemente trêmula do que o normal.Sinal de mau presságio. – Ana Paula, você trancou a porta da frente?
- Tranquei sim,Marie,em seguida que a Karine saiu com a Victória. Porque?
- Por segurança,é claro.Cássia tu sabe onde estão as velas?
- No porão?- Não queria admitir,mas a palavra passou rasgando em sua garganta e apenas em pensar naquele lugar sua cabeça girou.
- Sim.É lá que estão faz um bom tempo.Nunca precisamos de velas aqui antes e isso é tão novo pra mim quanto pra vocês todas,meninas. – deu um forte suspiro e tomou a fala,rapidamente – Eu não tenho idéia de que horas sejam,um almoço tem que ficar pronto,sabiam?Os relógios são todos digitais aqui nessa casa e pelo jeito, elas não gostam muito de pilhas.
- Honestamente Marie,que se dane o almoço.Nós aquecemos a comida,Karine nem sequer almoçou aqui ontem e duvido muito que Victória se lembre do que comeu. –Disse Cíntia com uma voz meio gingada meio cantada
.
Marie olhou distraída para Cíntia,como se estivesse mergulhada na parte mais funda de uma piscina azul.Pressão nos ouvidos,sons disformes e olhar distante.A desatenção não passou nem um pouco despercebida e só piorou quando um vago aceno de cabeça se fez.Cíntia foi ignorada e ela não gosta disso.Tinha suas razões.
- Preciso falar com vocês duas,é algo sério.- Disse Marie, com meia voz , apontando para Jaque e Cássia. Embora fosse escuro todas notaram a fulminante troca de olhares entre Ana e Cíntia.O clima pesou dentro da casa e não aliviou lá fora,não importasse o quanto chovesse.
As três levantaram-se formalmente, prendendo uma à outra com o olhar e foram em direção á cozinha,passos rápidos,bocas coçando.A porta de correr fechou com um estalido seco.As cabeças grisalha,ruiva e morena se encontraram,os olhos se fitaram por um momento e então Marie disse: “Meninas,acho que tem alguém lá fora,espreitando,eu vi a sombra de um homem!”.Embora o tom não tenha sido alto,ela parecia estar com um megafone e o chão já não parecia mais firme,ou eram as pernas moles,mas Cássia foi segurada pelas amigas.
Aquele homem só podia ser ELE!Ele veio me buscar.Oh Deus,tentei tanto escapar.Ele achou a casa,achou a minha irmã e depois me achou.Cadê aquela mulher forte que sou?Ela nasceu quando minha filha nasceu e morreu quando minha filha foi tirada de mim,alguém em algum lugar de sua cabeça respondeu.Amanda.Minha filhinha,será que está fazendo sol aí?Será que o Orfanato é um bom lugar?Deixe de besteiras mulher!Orfanatos nunca são bons lugares.Nunca se cantam a alegria,só há a dor da solidão em suas vozes.Era verde. O que era verde?O Orfanato,verde.Tudo lá era verde.Será que Amanda usa verde?Ela sempre odiou verde!Você a abandonou,a voz tornou a repetir.Eu a abandonei?Não,não,ela foi tirada de mim!A voz era dela.Sozinha,sem mãe,sem pai. E se tiver chovendo estará também sem luz?Queria tanto ver seus olhinhos negros. Passaram-se três anos desde a última vez...que dor perder,que dor não ter.Amanda.
- Amanda? Amanda?- Cássia abriu os olhos para uma claridade alaranjada,a pupila dilatou e contraiu,os olhos doeram. – Cássia?Você está bem?Desmaiou na cozinha.Está me ouvindo?Abra os olhos. – Muito devagar ela tornou-se a ficar reta,o corpo doeu um pouco,mas nada comparado a cabeça. – Meu Deus, o que aconteceu?-
Estávamos conversando,recém entrado na cozinha e você simplesmente apagou.Aah,desculpa amiga,mas foi rápido demais!- A voz de culpa vinha de algum lugar à sua esquerda e agora com uma vela nas mãos de Ana Paula,a loirinha, ela pode ver melhor a preocupação estampada nos rostos daquelas mulheres,a tempestade não era nada perto daquilo.Ela causara pânico desmaiando assim e aai!, batendo a cabeça no chão,concluiu o pensamento.Por isso as desculpas da Ana...
- Tudo bem,não foi nada mesmo- esboçou o sorriso mais doloroso de todos e olhou mais uma vez pra elas,que formavam um meio círculo ao seu redor: Jaque com sua testa dois dedos maior que o normal, sobrancelha bem desenhada ,olhos da mesma cor de mel, pele delicada e alva,queixo fino,cabelo castanho claro e muito crespo além de sardinhas, completavam um rosto muito encantador,difícil não se apaixonar.Depois para Ana Paula, fixando em seus olhos olhos grandes e verdes,sempre pintados com lápis,delineador e muito rímel.Eram muito expressivos.Pele pálida e boca meio grudenta por causa do gloss de morango.Essa era ela.Ah,claro que o cabelo platinado que caía até a cintura não podia faltar,não seria a Ana Paula sem ele.Fitou com curiosidade Cecília,a rainha da Selva,como gostava de chamar e gostou do que viu,isso lhe incomodou um pouco. Os olhos grandes e negros,profundos e serenos como a noite,ou maus e sem esperança como a vista de um profundo poço, contudo era de fato sedutor,até quando não seduzia,algo natural.Armadilhas da natureza...quis rir,mas ela ainda sentia dor.A boca de Cecília,era recortada de revistas e editada em fotoshop,ou, uma dádiva sem nenhuma intervenção do homem. E depois Marie,a alguns centímetros dela.Linda e velha à luz alaranjada que desprendia da vela incandescente,boa e com segredos do passado ainda a serem desvendados também,mas uma mulher extraordinária,forte,organizada e amável.Com ela fechava o círculo de mulheres.
Recostou a cabeça no encosto da cadeira almofadada bege e branca ( não tinha percebido ainda que estava sentada) e TUDO veio muito rápido,como se despejado sem delicadeza em sua cabeça.
O homem lá fora.Ricardo,seu namorado.Quem era o homem?Sua filha,Amanda,no Orfanato.Victória rindo dela.A casa que ela estava não era dela,era de alguém que segundo sua mãe,era irmã de sangue,mas nunca de alma.O cansaço da manhã de trabalho,o uniforme e a tentativa de machucar Cássia.As palmas mostrando o sucesso de Karine,cravadas a unha. TUDO. Sua mãe no caixão em um dia de chuva como esse que insistia em não parar,ela mesmo chorando horas sobre sua cama na lavanderia.O presente de ninguém,com fita Royal.Hipoglós.E um homem lá fora. PERIGO. Isso é perigo.Mas só conseguiu perguntar:
“Quem foi que trouxe as velas do porão?”. A resposta veio rápida. “Eu.Fui eu quem trouxe”. Jaqueline sorriu um pouquinho.Cássia queria dar um abração nela.Mas algo doeu mais forte e ela teve que falar.
“Eu caí dura assim?Do nada?”. “Na realidade não.Você ficou molenga,sabe?Parecia que não tinha ossos no corpo.”, foi Marie quem disse isso.
“E daí eu acordei agora?”. “Não exatamente”,disse Cíntia, a voz maldosa.”Você sibilava coisas,Cássia.Algo sobre uma tal de Amanda.E um homem também. Quem eram? Acho que já está na hora de você falar mais do seu passado,não acha?Ninguém aqui sabe nada sobre você!Ninguém sabe de onde veio,quem é!”
- Chega!Meus Deus Cíntia,que Jesus me perdoe,mas um dia você ainda vai morder essa língua e sentir o veneno nos dentes! – Marie estava quase púrpura,raivosa como ninguém nunca a vira antes.Levantara-se num pulo realmente surpreendente para sua idade.
- Eu só disse o que estava pensando!Aliás o que todas nós pensamos!- Lançou um olhar aflito em busca de ajuda para Ana Paula e Jaqueline. – Ai,não entendo o que vocês duas tem que tornam tudo tão difícil.Segredos engolem segredos por aqui,né?Olha...
- Pára.Nem eu sei quem é essa Amanda,nem esse homem,Cíntia. Eu trabalhei de mais e não comi ainda.Foi estresse,glicose baixa,sei lá.Se eu conhecesse esse “tal homem” que tu fala,das minhas alucinações,ele não seria um homem,Cíntia.Teria nome.Isso tá ridículo.Ninguém ta protegendo ninguém,a Marie só quer manter tudo certo entre nós. Okay?”. – A voz calma de Cássia fez surtir um efeito em todos ali. Uma dose de realidade e bom senso.Tudo fabricado,é claro.Odiou-se por deixar que ouvissem seus pensamentos,odiou-se por se entregar tão facilmente,mas concertara tudo.Só com uma mentirinha.
* Mentir não foi assim tão difícil,foi?Ela era uma mentirosa.Mas gostava disso,a mentira faz as coisas parecerem seda quando são lã. *
Um silêncio do tamanho da casa nasceu e ali ficou,típico depois de brigas como essas.Elas se olharam chateadas,raivosas e chateadas de novo.
Mas um barulho forte,firme e perigoso,equivalente a corações saltitantes e nós na garganta quebrou-o,alto como um jarro sendo jogado na parede,estridente como o roçar de dentes.Mas como o quebrar do jarro,o estalo do chicote ou a explosão de foguetes e bombinhas,ele foi rápido,porém suficientemente poderoso para acordá-las colocá-las em estado de alerta.Mais três batidas desesperadas na porta de madeira da sala fizeram-nas terem vontade se encolher até sumir.O silêncio renasceu agora,não das cinzas,mas das poças fora da casa.Só foi interrompido,segundos depois, pela perturbante imagem recém surgida de um homem alto e “caramba, ensangüentado!”, em maltrapilhos, com a cabeça encostada no vidro,ele olhava para os pés e para trás.Lá fora parecia um grande aquário e ele era a comida do tubarão,hoje.Ele levantou os olhos,num movimento rápido e percebeu que tinha a atenção agora. Elas congelaram ao fitar os olhos azuis e inchados que ‘Meu Deus!”, olhavam pra elas também.Era raiva ou medo?Dor ou solidão?Aquele peixe estava morrendo de algo ou querendo matar? Logo elas descobririam que lá fora e aqui dentro não era tão diferente,não eram mundos tão distantes.Segredos e mistérios pipocam em todos os aquários,e por hora,elas só eram peixinhos fora d’água. Por hora...